quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Sanatório V

2ª feira
No bloco principal há uma grande agitação, em todos os pisos se houvem gritos, os doentes já nem se distinguem dos médicos, parece a loucura total.
Lizandro chama Tomás, estafeta do bloco, aos berros ao gabinete:
- Tomás!!!
Tomás entra e saí transtornado:
- Alguém tem uma arma?!!!
O silêncio instala-se e só se houve as pancadas de metal a pousar sobre as secretárias, todos, sem excepção, pousam armas pequenas, facas, navalhas ou canivetes, há mesmo quem tire uma espingarda do forro do casaco comprido.
Tomás foge pelas escadas de incêndio assustado, José Pintarolas, ainda chama por ele:
- Oh, Nino, nino, volta aqui, é tudo boa gente, uns mataram a mãe e o pai, outros violaram a avó, e houve quem vendesse a irmã mais nova por droga, mas é tudo boa gente!!!
3ª feira
No bloco de Loures é dia de desfile de moda, actividade preparada para distrair quer doentes quer médicos, a passadeira está montada na cantina, afastadas a um canto estão as mesas e cadeiras, Bélinha atrás do balcão da cantina suspira:
- No tempo do gás (Cãmara de gás que existiu até uns anos antes no bloco) é que era!!! - com uma mão semi-pousada no balcão, Bélinha, vestida com a sua bata branca, desfila, ao som da música que se começara a ouvir, de uma ponta à outra do balcão, de lado, numa pouse pretendidamente provocante, deixando à mostra parte dos seios que se penduravam no decote pouco fechado da bata.
O desfile começa, à frente Patricia Silva com uma blusa branca transparente tão apertada que se notam as nervuras do soutien azul "choking" por baixo, as mamas a vomitar cá para fora, parecendo que a qualquer momento vão mesmo saltar, na ponta da passadeira dá meia volta, a mui mini-mini saia de folhos e branca levanta-se com a volta e deixa ver as cuecas fio dental da mesma cor, as enormes bochechas do rabo estremecem, e ela volta confiante, nas suas botas brancas de salto de 12 cm abraçadas no cano alto por umas meias de lã azuis, para o fim da passadeira.
Médicos e doentes uivam à sua passagem, não se percebe muito bem porquê.
Segue-se Raúl Duarte, o enfermeiro chefe desloca-se de andarilho, sem parecer ter consciência disso, num dia que teria ido prestar serviços de enfermagem fora do bloco, distraíra-se a conversar com os colegas, que era o melhor que sabia fazer, e uma grua que fazia mudanças na rua largara um piano que lhe caíra em cima.
Ainda assim Raúl Duarte achava que o seu passado de modelo, como uma vez se vangloriara a Idalina, Francisca e Madalena, superava as suas debilitações passageiras:
- Tive um periodo díficil na minha vida!
- Droga?!!!
- Prisão?!!!
- Prostituição?!!!
Perguntaram as três.
- Não, fui modelo!!! - respondeu Raúl Duarte todo inchado
As três comentaram mais tarde como era possível Raúl Duarte ter sido modelo, o cabelo pintado indisfarçavelmente de platinado só ocupava o lugar de "crista", na boca não se viam mais de 3 dentes, dois em cima e um em baixo, o cinto das calças parecia esmifrar o pneu que saía depois abundantemente por cima dele e a altura não ía além de 1.70 contando com a marreca.
Raúl arrastava o andarilho devagar, olhando à sua volta esperando a admiração das mulheres, assim não reparou que chegou ao fim da pista, o andarilho caíu desapoiado do chão e Raul Duarte caíu por cima.
Os enfermeiros foram chamados à sala, as pessoas abandonaram a cantina, Joaquim Marinho saíu da sala a abanar a cabeça:
- Vocês não prestam para nada!!!
4ª feira
Porfírio Relva chora no seu gabinete, filho único e tendo passado o Natal há apenas 3 dias, e apesar da sua idade, chora desconsoladamente porque em vez da pista de carrinhos que tinha pedido na carta ao Pai Natal, recebera roupa dos seus pais.
- O que tens Porfirio? - pergunta Jesus Cristo preocupado.
- O que te aconteceu? Nunca te vi assim. - pergunta Célia Coquete enquanto enfia mais duas missangas no seu longo fio.
Porfírio atira-se para o chão e bate com as mãos e com os pés em birra total:
- Não sou um miúdo mimado!!! - grita ele sem explicar.
5ª feira
Idalina, Francisca e Madalena conversam na sala de arquivo sobre os meses que já passaram no bloco de Loures:
- Vocês lembram-se que o Jesus Cristo fechava a porta do arquivo?!!! - pergunta Idalina
- Pois era - confirma Francisca - e nós vinhamos da outra sala com as pastas amparadas pela testa sem vermos nada à frente e íamos contra a porta do arquivo fechada e as pastas caíam todas no chão!!!
As três riem, Joaquim Marinho entra na sala e pensa que elas se riem dele. Sai da sala e exclama:
- Vocês não prestam!!!
6ª feira
Felisberto Trincada, novo doente do bloco de Loures que, pensa ser Salvador Dali, passeia-se pelos corredores e exclama: "Para pintar só é preciso um cavalete e uma tela", enquanto isso vai dando umas pinceladas em branco, numa tela em branco que desloca equilibrada num cavalete pelos vários corredores do bloco.
"E talento" - pensam as pessoas por quem ele passa.

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